Irmã Alessandra Smerilli: Gostaria de esclarecer logo algumas possíveis interpretações que talvez não estejam na lógica que o Papa Francisco queria dar a esta encíclica. O documento não é, de forma alguma, contra o mercado, mas chama a atenção para suas derivações. Destaca os riscos de um mercado que não é mais como deveria ser, e é por isso que fala de "neoliberalismo". Nos últimos anos, temos testemunhado uma penetração progressiva do mercado também em áreas onde tradicionalmente a gestão de certos bens comuns era feita “em comum”. Estes desvios são condenados pelo Papa, que nos mostra ao mesmo tempo como a pandemia trouxe à tona o que antes era difícil de entender: o mercado sozinho não pode resolver tudo.
Temos visto nos últimos meses como, por exemplo, mesmo em custos de saúde, se for deixado mais espaço para o mercado, podemos nos encontrar despreparados para enfrentar emergências como a pandemia. Podemos ver que os gastos com saúde no mundo cresceram mais nos últimos anos do que o PIB mundial. O PIB mundial cresceu em média 2,8% e os gastos com a saúde cresceram em média 4%. Portanto as despesas aumentaram, mas foram direcionadas para doenças não transmissíveis, doenças crônicas, seguros privados, quando, para lidar com um mal como este vírus, que nos pegou a todos de surpresa, teríamos precisado de seguros coletivos.
A realidade é que precisamos de gastos que à primeira vista parecem ineficientes. Segundo as regras do mercado e da eficiência, ter mais lugares nas CTI quando não há necessidade é errado e, portanto, são cortados. Na Fratelli tutti o Papa nos diz que se nos preocupamos com o bem comum, não podemos adotar apenas os critérios de eficiência e a pandemia nos mostrou isso. O mercado funciona bem quando é civilizado, ou seja, constrói a civilização, e quando também é coordenado em nível político.
Rádio Vaticana: No parágrafo 23 da encíclica, o Papa afirma que "a organização das sociedades em todo o mundo ainda está longe de refletir com clareza que as mulheres têm exatamente a mesma dignidade e idênticos direitos que os homens. As palavras dizem uma coisa, mas as decisões e a realidade gritam outra". Como a senhora comentaria estas palavras?
Irmã Smerilli: Notei que em mais de um ponto da encíclica este tema é mencionado: o Papa insiste que a igualdade no nível dos direitos, da dignidade humana, deve ser traduzida das palavras aos atos. Com relação à controvérsia que precedeu a publicação da encíclica, sobre a escolha considerada por alguns como discriminatória no título, foi explicada por muitos e de muitas maneiras que a palavra "Irmãos" é uma citação exata de São Francisco que quer entender tanto os irmãos como as irmãs. Na minha opinião, o fato de que o simples anúncio do título tenha desencadeado tal debate mostra que o assunto é polêmico, é muito sentido e precisa ser enfrentado.
Certamente há uma necessidade de progredir não apenas na Igreja, mas na verdade é uma questão cultural. Creio que o caminho no campo eclesial tenha sido bem traçado pelo Papa Francisco na Evangelii gaudium, quando afirma no parágrafo 103 que "ainda é preciso ampliar os espaços para uma presença feminina mais incisiva na Igreja" e acrescenta que "o gênio feminino é necessário em todas as expressões da vida social e por isso deve ser garantida a presença das mulheres também no âmbito do trabalho e – continua ele - nos vários lugares onde se tomam as decisões importantes".
Com essa primeira Exortação Apostólica, acredito que esse caminho tenha sido bem iniciado. Entretanto, é claro que, na lógica de iniciar processos em vez de ocupar espaço - um dos princípios mais importantes do Magistério do Papa Francisco - há ainda hoje a necessidade de uma visão feminina, talvez mesmo sobre o tema da fraternidade. Como mulheres, devemos nos apresentar, não devemos ter medo de oferecer nossos pontos de vista...
Rádio Vaticana: Em agosto, o Papa escolheu seis mulheres como especialistas leigas para o Conselho para a Economia...
Irmã Smerilli: O Papa Francisco fez muitas escolhas semelhantes, demonstrando que não queria se deter em declarações de princípio. Eu também fui nomeada Conselheira do Estado da Cidade do Vaticano e parece que esta é a primeira vez para uma mulher. Mas acredito que o tema profundo é passar das palavras e ações do Papa Francisco a um compromisso em todas as células da Igreja. A Igreja local, os movimentos, as associações, os leigos... Em todos os níveis eclesiais existe a necessidade, por um lado, de oferecer esta visão feminina e, por outro, de acolhê-la para caminhar juntos.
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