O humanismo faz parte da história do renascimento. Foi um movimento da centralização do homem e da natureza humana. Colocava o homem como a obra mais perfeita do Criador, sendo capaz de compreender, modificar e até dominar a natureza. Preparar, portanto, a pessoa para explorar todas as suas potencialidades. O humanismo provocou uma reforma no ensino das universidades, com a introdução de disciplinas como poesia, história e filosofia. Porém, nem sempre este movimento foi pacífico. Em nome do humano, muitas vezes se rejeitava o divino, e o perigo do retorno ao paganismo era real. Tanto os cristãos católicos como os reformados perceberam isso, e procuraram dar respostas.
Em Francisco de Sales o humanismo é integral. Poderíamos chamar de “humanismo teocêntrico”, pois está enraizado onde o homem tem suas raízes e é o humanismo da encarnação. Ao mesmo tempo, Francisco não tirou da sua espiritualidade as realidades naturais e terrestres, como o corpo, paixões, afetividade, relacionamento com os outros e com as realidades do mundo. Sales acolhe o humanismo na medida em que este concorde com o Evangelho. Para ele, o humanismo é uma maneira de estar no mundo, com os próprios semelhantes e com Deus.
A carta magna do humanismo cristão
O humanismo de Francisco de Sales deve ser interpretado à luz do “Tratado do Amor de Deus”. Poderíamos afirmar que é a “carta magna do humanismo cristão”. Nele lemos a magistral definição sobre a perfeição do universo: “O homem é a perfeição do universo; o espírito, a perfeição do homem; o amor, a perfeição do espírito e a caridade, a perfeição do amor. Por isso o Amor de Deus é o fim, a perfeição e a excelência do universo”.
Francisco diz que o ponto de partida para compreender o ser humano não deve ser buscado em si mesmo, nem nos grandes homens da história, mas no Criador, em Deus. A grandeza da pessoa está no Criador, pois Deus fez a pessoa humana como Ele é: Amor! O ser humano foi criado por amor e para amar, foi criado como filho. Deus se uniu à natureza humana no mistério da encarnação. O reconhecimento da dignidade e da perfeição do ser humano leva à confiança na pessoa humana, que se expressa num conjunto de virtudes.
Assim, o humanismo salesiano se afasta da ideia de que a pessoa humana é um ser condenado ao fracasso, à solidão e à morte, expresso em alguns pontos: infelicidade, rechaço do mundo, nascemos para morrer, gememos, choramos, imploramos. João Pedro Camus, na biografia que escreveu sobre Francisco de Sales, diz que “na galé do amor divino não há condenados ou escravos: todos os remadores são felizes”.
A valorização do humano
A visão humanista do Bispo de Genebra valoriza o corpo. Vejam a maravilhosa descrição do corpo que ele faz no “Tratado do Amor de Deus”: o “cristão deve amar o seu corpo como uma imagem viva do Salvador encarnado, como saído do mesmo tronco que o seu, e por consequência, unido a ele com laços de parentesco e sanguinidade”. Para os humanistas, que procuraram valorizar o corpo nas artes, principalmente na pintura e na escultura da época do Renascimento, esta é uma visão positiva, rica, atraente, otimista. Aqui também Francisco convida a afastar para longe do nosso entorno as visões pessimistas sobre o corpo, que estavam em voga na sua época.
Portanto, podemos afirmar que Francisco de Sales quer homens e mulheres livres, não escravos a serviço de Deus! Para ele, o cristão realiza o caminho da felicidade através da liberdade e sem esta, diz, perderíamos nossa capacidade de amar. Na tarefa de ser feliz, a liberdade humana será iluminada e guiada pela razão. Sales convida a chegar ao domínio do coração, a ter uma grande força interior. Ele quer pessoas convencidas, humildes, equilibradas. Vivenciar a humildade é muito difícil. Na sua época, jamais um senhor ou uma senhora nobres fariam o que propôs para uma dama da sociedade: “Fareis um ato de humildade todos os dias, dando a saudação do bom dia ou da boa noite a algum dos vossos criados ou criadas, com um ato interior, mediante o qual reconhecereis essa pessoa como vossa companheira na redenção que Nosso Senhor fez por ela. Chamareis vossa criada, o mais frequentemente que puderdes, de ‘querida’”.
Otimismo salesiano
Outro aspecto que precisamos destacar no humanismo salesiano é o do otimismo. O otimismo salesiano se manifesta na visão otimista da realidade, da vida e das pessoas. Sales acredita na pessoa concreta, na possibilidade de superação e não pede esforços ascéticos de mortificação e de jejum para se conseguir isso. Também sempre incentiva a pessoa a continuar na caminhada, em busca da sua perfeição. Frequentemente em suas cartas Francisco escreve: “Olhai para frente... dirigi para cima vosso olhar, com total confiança na bondade de Deus”.
É importante cultivar um sadio otimismo para que possamos ser portadores de esperança. Não se trata de fazer de conta que não se enxerga o negativo, as fraquezas humanas... trata-se de ver no mundo onde vivemos tudo aquilo que é positivo, todas as possibilidades que algo encerra para gerar mais vida e amor. Segundo Eugênio Alburquerque, “Francisco é otimista porque é um homem de fé.”
É desta fé que nasce o otimismo salesiano, porque acredita que Deus amou tanto o mundo, que enviou o seu Filho para o salvar, e não para condená-lo. No “Tratado do Amor de Deus”, Francisco de Sales escreveu: “O sol não ilumina somente uma rosa no meio de mil, milhões de outras flores, como se olhasse só para ela. E Deus não infunde menos seu amor sobre uma alma, embora ame uma infinidade doutras, do que se só a essa amasse, pois a força do seu amor não diminui por mais raios que espalhe, antes permanece sempre cheio de sua imensidade”.
O Boletim Salesiano publica durante este ano de 2022 uma série de artigos sobre a espiritualidade de São Francisco de Sales, patrono da Família Salesiana criada por Dom Bosco. Acompanhe nas edições do Boletim Salesiano e no portal: https://www.boletimsalesiano.org.br