No outono de 1883 aconteceu uma visita que não fez barulho na casa, mas que teria consequências do mais alto valor. Apresentou-se a Dom Bosco um jovem sacerdote, pessoa esbelta, de aspecto reflexivo, ponderado no falar e de modos corteses. Depois de uma conversa de assuntos amenos, Dom Bosco disse ao visitante:
- Agora o senhor, Pe. Aquiles, é dono da casa. Sinto não poder acompanhá-lo eu, pois estou muito ocupado, nem sei quem lhe apresentar como guia, pois também estão todos ocupados. O senhor vai, veja tudo o que quiser.
Pe. Aquiles Ratti, que estava fazendo suas primeiras experiências na biblioteca ambrosiana de Milão, desejava conhecer de maneira especial como funcionava a tipografia do Oratório e, em geral, como funcionavam as escolas profissionais. Ficou muito interessado pela tipografia com seus anexos e dependências, como a fundição dos tipos e a encadernação. Ao ver novamente Dom Bosco no refeitório, perguntado por ele o que vira de bonito, respondeu: Vidi mirabilia hodie (Vi maravilhas hoje).
Acolhida familiar
Era a época em que os Diretores iam à casa mãe para conversar com Dom Bosco, expor-lhe suas situações e receber orientações e apoio. O Santo os recebia sem formalidades no refeitório logo depois do almoço. O hóspede fez sinal de afastar-se. Porém, Dom Bosco lhe disse:
- Não, não, fique...
Dessa maneira, o Pe. Aquiles Ratti, como bom observador, assistiu à série de prestações de contas, mas mantinha de maneira especial sua atenção na atitude de Dom Bosco diante de tamanha diversidade de pessoas e assuntos.
Semelhante confiança concedida a um hóspede desconhecido ficou limitada somente a esse caso. Durante os dois dias em que ele permaneceu no Oratório, Dom Bosco o acolheu na intimidade da família, tratando-o como um dos seus, e deixando-o livre para andar pela casa observando o funcionamento e informando-se a respeito de tudo o que desejasse. Isto o deixou um tanto maravilhado. Entretanto, duas coisas são certas: esse curto espaço de tempo foi suficiente a seu sagaz olhar para avaliar a personalidade de Dom Bosco e o alcance de sua missão, e que as palavras ouvidas e as impressões colhidas na oportunidade não se apagaram nunca mais da memória do futuro Pontífice Pio XI, como atestam seus frequentes testemunhos, tanto privadamente, quanto nas audiências públicas.
Fortes impressões
Passando agora às impressões provocadas no jovem levita por esse único encontro com o Santo, temos que reconhecer que devem ter sido das mais profundas, pois, após tão grande distância no tempo, ainda lhe causavam tão viva e terna recordação. “Já se passaram quarenta anos”, dizia em 1929, “e nos parece ontem, aliás hoje, vê-lo da mesma maneira como o vimos e ouvimos, sob o mesmo teto, à mesma mesa, e tendo tido a alegria de me entreter muitas vezes com ele, apesar das muitíssimas ocupações”.
Percebemos que nenhuma das qualidades características de nosso Santo escapou ao atento observador. Já no primeiro encontro percebera nele uma “pessoa muito impressionante e atraente, uma pessoa completa”. Viu nele “a força de trabalho, a indomável resistência ao trabalho, trabalho cotidiano e de todas as horas, da manhã à noite, da noite à manhã, quando fosse necessário”; “uma vida de trabalho colossal, que dava a impressão de opressão somente em ver”.
Viu nele um dos mais lindos dons, isto é, “estar presente em tudo”, apesar de “um contínuo turbilhão, cheio de angústias, no meio de um mundo de solicitações e consultas”, e, no entanto “estar com o espírito sempre em outro lugar, onde a calma era sempre dominante e soberana”; uma vez que era uma de suas qualidades mais impressionantes, “uma calma superior, um controle do tempo que o fazia ouvir a todos os que a ele acorressem, com tamanha tranquilidade como se nada mais tivesse que fazer”. Observou nele “uma paciência inalterável, inexaurível” e “verdadeira e sincera caridade, de modo a existir nele sempre uma sobra de sua pessoa, da mente, do coração, para quem chegasse por último, qualquer que fosse a hora que tivesse vindo e depois de qualquer trabalho”.
Admirou ainda nele o “grande, fiel e verdadeiramente sensato servidor da Igreja Romana, da Santa Sé Romana”. Sim, essa “fidelidade generosa e corajosa a Jesus Cristo, à sua santa Fé, à santa Igreja, à Santa Sé, foi o privilégio” exemplar que o Santo Padre pôde “ler e sentir em seu coração”, constatando “que acima de qualquer glória, ele colocava a de ser fiel servidor de Jesus Cristo, da sua Igreja, de seu Vigário”.
Outra impressão ainda viva no espírito do Pontífice é que ele lhe parecia “um homem invencível, insuperável, porque firme e solidamente fundado numa confiança total, absoluta na fidelidade divina”.
Dom Bosco como exemplo de sacerdote
Outra coisa que o tocou, foi perceber nele uma atitude sacerdotal, resultado de perfeita preparação. Falando aos alunos dos pontifícios seminários romanos maior e menor, no dia 17 de junho de 1932, após ter acenado à dupla preparação que deve preceder ao sacerdócio, isto é, preparação moral e intelectual, trouxe o exemplo de Dom Bosco, dizendo: “Tivemos a oportunidade de ver muito de perto o Beato; ficamos edificados exatamente na presença de uma e de outra preparação, e ver tudo o que nem todos tiveram o prazer de ver, também entre seus filhos. Uma vez que sua preparação de santidade, a preparação de virtudes, a preparação de piedade, era notada por todos, porque era toda a vida de Dom Bosco: sua vida de cada momento era uma imolação contínua, um permanente recolhimento de oração; esta era a impressão mais viva que se tinha de sua conversa: um homem atento a tudo o que acontecia diante dele. Era gente que chegava de todo os lados [...] e ele de pé, sobre os dois pés, como se fosse algo de um instante, ouvia tudo, entendia tudo, respondia a tudo, sempre em atitude de recolhimento. Dir-se-ia que não ficava atento a nada do que se falava a seu redor; dir-se-ia que seu pensamento estava em outro lugar; e de fato, era isto mesmo: estava com Deus em espírito de união. Mas depois, ei-lo respondendo a todos, tinha a palavra certa para tudo e para si próprio, de maneira a encantar: primeiro surpreendia e depois maravilhava. Esta era a vida de santidade e de recolhimento, de assiduidade à oração, que o Beato levava nas horas noturnas e em meio a todas as ocupações contínuas e implacáveis das horas diurnas. Mas muitos não se deram conta da preparação de sua inteligência, a preparação científica, a preparação do estudo, e são muitíssimos os que não se fazem ideia de como Dom Bosco se entregou e se consagrou ao estudo. Estudara muitíssimo, e continuou a estudar”.
Finalmente, ao reevocar com tanta insistência esse feliz momento, uma impressão dominante do Santo Padre é que nele havia um traço da “Bondade divina”, e uma “admirável disposição de Deus”. De modo que entre “as maiores graças de sua vida sacerdotal” ele não hesita em enumerar seu “encontro com Dom Bosco”.
Na despedida
Na hora de se despedir, o hóspede quis manifestar a própria satisfação também entregando uma oferta a Dom Bosco; mas o Santo, algo insólito, recusou-a, dizendo:
- O senhor pode ser útil em outra coisa à nossa Congregação.
Não queremos atribuir a essas palavras mais do que o sentido de uma fina cortesia; nada, porém, nos proíbe concluir com uma reflexão. Aquele que confiara ao humilde sacerdote piemontês uma missão tão grande quanto a Igreja, guiou os acontecimentos de maneira tal, que aquele de seus Vigários, ao qual caberia a tarefa de selar essa missão com o timbre supremo, descobrisse a tempo e avaliasse de perto os tesouros da graça derramados em seu coração pelo Espírito Santo.
Padre Osmar A. Bezutte, SDB, é revisor da nova tradução das Memórias Biográficas de São João Bosco (Editora Edebê).